Dia da Independência
Foi no dia 1 de dezembro de 1640 que Portugal pôs termo a 60 anos de domínio espanhol. A efeméride assinala-se amanhã, sábado. E o “Diário do Alentejo” voltou a mergulhar na história. E, inevitavelmente, voltou aos tempos de Mariana Alcoforado, do conde de Chamilly. Aos anos da Guerra da Restauração. E, ao mesmo tempo, foi à procura de cidadãos espanhóis que tenham escolhido a região para viver, para perceber a sua visão sobre o acontecimento, à distância de tantos anos, mas também o seu apego à terra que os acolhe.
Texto Bruna Soares Ilustração Susa Monteiro
Foi no dia 1 de dezembro de 1640 que terminou o domínio espanhol, com a Restauração da Independência de Portugal. E hoje? É mais aquilo que nos une, do que aquilo que nos separa? Estão saradas as nossas quezílias históricas? O que leva a que cidadãos espanhóis tenham escolhido o lado de cá da fronteira para viver?
Mas antes vamos à história e vamos aos factos. Leonel Borrela, estudioso, a pedido do “Diário do Alentejo”, faz um breve enquadramento histórico, mas alerta: “Foram vários os motivos que levaram à conspiração de 1640”. Primeiro: “A usurpação do trono português por Filipe II de Espanha, em 1580, na sequência da morte, na batalha de Alcácer Quibir, do rei D. Sebastião, em 1578”. Recorde-se, contudo, que “havia herdeiros legítimos, entre eles, o cardeal D. Henrique que ainda foi rei e D. António prior do Crato que foi obrigado a exilar-se, assim como o 7.º duque de Bragança, D. Teodósio, que aparentemente, sem levantar objeção à coroa espanhola, ficou sediado no paço de Vila Viçosa”.
Depois, avança, “as promessas não cumpridas dos reis de Espanha, relativas à autonomia administrativa e económica de Portugal, com o agravamento de impostos (que conduziu à revolta de Évora, conhecida como o Manuelinho, em 1637) e o recrutamento ilegal de soldados portugueses”. E, por fim, “o enfraquecimento militar de Espanha originado pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), contra a França, mais a revolta da Catalunha em 1640”.
Mas como se dá o 1 de dezembro de 1640? “O império espanhol estava em declínio e Portugal arrasado por 60 anos de submissão; as antigas colónias eram pasto de mercadores e piratas essencialmente holandeses e ingleses que dominavam os mares. Surgiu, então, a oportunidade há muito desejada, aceitando D. João, filho de D. Teodósio, a proposta de um grupo de 40 conjurados, ligados à nobreza, para depor o governo espanhol.
Num sábado, a duquesa de Mântua, vice-rainha de Portugal, foi deposta e aclamado D. João IV, primeiro rei da dinastia de Bragança”.
Era, contudo, necessário defender as fronteiras de uma provável retaliação espanhola. “O Alentejo é assolado pelas investidas espanholas essencialmente a partir de 1653, sendo defendido pelas tropas organizadas pelo alemão Schomberg e por centenas de franceses, ingleses e portugueses”, explica Leonel Borrela. E acrescenta: “D. João da Áustria, à frente de um poderoso exército espanhol, toma Évora e envia um ultimato a Beja para se render, em 1663, mas Rui de Melo, cunhado de soror Mariana Alcoforado, governador militar da capital baixo-alentejana, convidou-o a vir conquistá-la, pelas armas, se pudesse.
Não veio e recuou, perseguido, para a segurança do território espanhol, e Beja conservou-se intacta, sem uma beliscadura, partindo, até, dela para a fronteira vários pelotões que provocaram sérios estragos, um deles, entre muitos outros, onde esteve o conde de Chamilly- Saint-Légèr, Noel Bouton, chegou a tomar Sanlucar, frente a Alcoutim, com destino que não se concretizou, por ordem real, a Ayamonte”. E prossegue: “É curioso que durante este período houve um tratado de não agressão, nem sempre cumprido, de parte a parte, entre os concelhos a sul de Beja, banhados pelo rio Guadiana, e o condado de Niebla, da área de Sevilha, para permitir o movimento dos comboios de aprovisionamento das praças fortes situadas mais a norte”.
Hoje, contrariamente a anos já há muito idos, são vários os cidadãos espanhóis que escolhem a nossa região para viver. É o caso de Natália Tost, Gema Puntada e José Torres.
A semana começa cinzenta e o frio faz com que pouca gente saia à rua em Messejana, concelho de Aljustrel. A artéria inclinada, revestida de calçada, leva ao topo, onde se avista a igreja, de barras azuis e pintada a cal, imaculada. Uma transversal, de pouca largura, leva até à casa de Natália Tost.
Nasceu na Catalunha, em 1974. E não tem dúvidas: “Espanha e Portugal não poderiam estar juntos. Digo juntos no sentido de Estado, uma vez que Portugal e Espanha têm uma cultura muito diferente. Parece que poderíamos ter muito em comum, porque estamos territorialmente muito próximos, mas ideologicamente e culturalmente não estamos”.
A televisão insiste em não ligar. Mais um corte de energia elétrica que assolou Messejana e Natália teme que o computador, no qual trabalha, um dia se ressinta. Na verdade, Nàtalia dedica-se à sua editora, O Lado Esquerdo, que, entre outras coisas, faz livros gigantes para gente miúda (livros temáticos em tecido e com diversos objetos interativos), livros de pano mais pequenos (bebezudos e minibebezudos) e ainda livros em papel. Antes, chegou a Portugal como voluntária e colaborou com a Esdime.
“Muitas vezes me senti mal, porque sempre achei que os portugueses tinham um carinho pelos espanhóis e que o contrário não acontecia. Não porque os espanhóis não gostassem de portugueses, mas porque o espanhol ignorava mais facilmente o português”, afirma, para rapidamente acrescentar: “Às vezes, contudo, os portugueses também me faziam confusão. Oiço, embora agora já não tanto, porque a situação está difícil em ambos os países, muitas barbaridades.
(...) Natália escolheu Messejana para viver. “É uma terra muito bonita. Num sítio com muita gente damo-nos com os que são iguais a nós. Num sítio pequeno damo-nos com toda a gente”. E por cá fica, garante, até que passe “outro ‘comboio’, que possa, quem sabe, apanhar”.
Gema Puntada, por sua vez, tenta manter-se em Portugal. A Espanha vai de férias, à sua terra natal: Madrid. Mas a sua permanência em muito vai depender de encontrar um trabalho. Para já, está em Almodôvar.
Também chegou ao Alentejo para desenvolver um projeto de voluntariado europeu. “Este trabalho fez-me descobrir esta linda e tranquila região e também as suas pessoas. Quando o projeto acabou decidi ficar para tentar construir aqui a minha vida. Acho que a escolha, em grande parte, deveu-se à tranquilidade e à possibilidade de poder estar em permanente contacto com a natureza”.
Gema confessa-se enamorada pelo Alentejo e, se dúvidas houvesse, defende: “É a região mais bonita de Portugal”. Mas lamenta “a falta de trabalho” e o facto de a região “ter falta de pessoas jovens”. Em sua opinião, “um bom desenvolvimento económico e social poderia trazer pessoas para a região ou fazer com que os jovens alentejanos ficassem nas suas terras”.
E quanto à relação entre Portugal e Espanha? “Tenho dúvidas de que alguma vez pudessem ter sido só um país. No entanto, seria bom podermos unir as nossas forças para superar as nossas dificuldades”. Até porque, em seu entender, portugueses e espanhóis têm muitas coisas em comum, apesar das suas diferenças.
Para Gema Puntada, neste momento, não é muito diferente viver deste ou daquele lado da fronteira. “Por enquanto, os dois países estão mais ou menos na mesma situação. Em crise. Temos de viver onde nos encontremos felizes”. E continua a sua busca por um emprego, embora um dia sonhe poder desenvolver em terras alentejanas um projeto de cariz social.
A aventura e a procura de novas paragens, de novos rumos de vida, estiveram também na origem da partida de José Torres, mais conhecido como Enano – Free Artist. Nasceu em Cádis, também em 1974, mas cresceu e viveu em Jerez de la Frontera.
Depois de ser vítima do desemprego, “tentou mudar de cenário e de condição”. Pegou na mochila e disse à mãe que estava indo para onde o vento o levasse. Um camionista deu-lhe boleia para Évora. Foi a primeira vez que ouviu falar da cidade, mas depressa percebeu por que era considerada Património Mundial da Humanidade. Cidade, esta, que na altura organizava um Encontro Ibérico de Artes Circenses. José Torres, ou melhor Enano, é “palhaço ativista”, artista de rua. Foi aqui que começou a sua relação com o Alentejo. Reside no concelho de Odemira e considera-se “‘portunhol’ com uma grande costela alentejana”.
Na região há muitas coisas que o cativam, que vão desde a gastronomia ao modo de ser e estar do alentejano. Tanto que foi aqui que decidiu criar o seu filho, Zairo Amadeus.
Gosta de pensar que tanto Portugal como Espanha têm a sua “individualidade” e que a independência “é merecida para ambos”. No entanto, defende que “era bom que compartilhassem mais coisas, em diferentes condições e aspetos, para que se ajudassem em tudo o que fosse possível, de modo a que cada país tivesse mais produtividade e peso no mundo”. Mas tal não o impede de tirar “o chapéu à padeira de Aljubarrota que pôs os castelhanos no seu lugar”.
Enano, ou José Torres, defende que as “desavenças históricas estão ultrapassadas” e que, “até as futebolísticas, que são mais recentes, também”, embora o “Cristiano Ronaldo ainda esteja à espera de tirar o penálti da semifinal do Euro” (risos).
Quanto ao ditado “de Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos”, todos respondem em uníssono: “Não é verdade. Já ultrapassámos as nossas divergências”. Até porque, a prová-lo estão os casais ibéricos deste e do outro lado da fronteira.
Mariana Alcoforado e os anos da Restauração
Mariana Alcoforado nasceu em Beja a 22 de abril de 1640. Viveu todo o período até ao reconhecimento da independência de Portugal. Anos, estes, que inclusive são marcados pela escrita de Cartas Portuguesas dirigidas ao conde de Chamilly, oficial francês que lutou em solo português durante a Guerra da Restauração. Segundo Leonel Borrela, “ninguém pode afirmar que Mariana Alcoforado viveu a sua meninice e adolescência desta ou daquela maneira. Apesar do período de guerra, é provável que se tenha divertido com os irmãos, em correrias, jogos e outras brincadeiras, quer no seu palacete da rua do Touro, quer na quinta que seus pais possuíam próximo de Beja, ainda hoje conhecida pelo nome de família. Preocupar--se-ia mais, obviamente, com a integridade física dos seus familiares e amigos, envolvidos na defesa da cidade e do reino, do que com as expetativas criadas em torno da independência e construção de um mundo melhor para Portugal”.
“Criança aristocrata, filha segunda da família mais rica da cidade, ingressou com 11 anos de idade, por vontade dos pais, como noviça na Ordem de Santa Clara no convento da Conceição, situado intramuros, às portas de Mértola. A irmã mais velha, Ana, casou com Rui de Melo; o irmão Baltazar, o terceiro, herdou o morgadio, depois de ter servido as forças militares ao lado do cunhado Rui e de Noel Bouton, o cavaleiro nobre francês, conde de Saint- Légèr e de Chamilly, a quem Mariana, já freira, escreveria as cinco cartas de amor, entre 1667 e 1668”, completa Leonel Borrela, embora defenda que muito mais sobre a vida de Mariana Alcoforado houvesse a dizer.